quinta-feira, 3 de abril de 2014

Freud e a cura pela hipnose



Por José Henrique P. Silva

In: FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas: edição standard brasileira. Volume I – Publicações Pré-Psicanalíticas e Esboços Inéditos (1886-1899), pág. 155-170.
Este artigo veio à luz quase exatamente na mesma época da “Comunicação Preliminar” de Breuer e Freud, e serve como uma ligação entre seus escritos sobre hipnotismo e aqueles que abordam a histeria, assunto pelo qual Freud começava a se interessar. www.leandromotta.psc.br

Neste artigo Freud traz a público um caso isolado de cura pela sugestão hipnótica onde foi possível individualizar o mecanismo psíquico básico do distúrbio. Tratava-se de uma mãe que era incapaz de amamentar seu bebê recém-nascido. www.hipnose-psicanalise.com.br

A jovem senhora tinha entre 20 e 30 anos e Freud a conhecia desde a infância. Sua tranqüilidade dificultava que alguém a considerasse neurótica, daí Freud classificá-la como uma histérique d’occasion. Vamos ao caso.

Antes, uma observação. O irmão sofreu de uma neurastenia típica do início da idade adulta que arruinou sua carreira. Ele enfrentara, na puberdade, dificuldades sexuais próprias da idade; segue-se uma sobrecarga de trabalho, como estudante; e sofre um ataque de gonorréia e constipação. Esta, com o tempo, é substituída por uma pressão intracraniana, depressão e incapacidade para o trabalho. Torna-se mais ensimesmado até se tornar um tormento para a família. Fica aberta, então, a possibilidade de haver uma disposição hereditária para a neurose.

A paciente estava se preparando para a amamentação de seu primeiro filho mas, houve pouca produção de leite e surgiam dores quando da amamentação. Logo vieram a perda de apetite e a insônia. Após 15 dias abandonou a tentativa e recorreu a uma ama-de-leite. Após isso, os sintomas desapareceram.

Três anos depois nasceu o segundo bebê, e os esforços da mãe para amamentação eram menos sucedidos ainda. Além de tudo ela passava a vomitar tudo o que comia. Seus médicos, entre os quais Breuer, só lhe pediram mais um esforço: a sugestão hipnótica. Foi aí que Freud foi apresentado profissionalmente à paciente.

Foi feita a hipnose e as sugestões foram no sentido de contestar todos os temores e os sentimentos em que esses temores se baseavam. Durante cerca de doze horas os problemas desapareceram. Na segunda hipnose houve mais energia e confiança, e foi sugerido que a paciente se zangasse com a família por estar com fome. Ela agiu dessa forma e passou a melhorar significativamente e amamentou a criança por 8 meses. Depois, teve o terceiro filho e o processo se repetiu, com sucesso.
É quando Freud começa a se perguntar: qual teria sido o mecanismo psíquico do distúrbio da paciente que foi removido pela sugestão?

Existem determinadas ideias que têm um afeto de expectativa que lhes está vinculado. São de dois tipos: ideias de eu fazer isto ou aquilo – o que denominamos intenções – e ideias de isto ou aquilo me acontecer – são as expectativas propriamente ditas. O afeto vinculado a tais ideias depende de dois fatores: primeiro, o grau de importância que o resultado tem para mim; segundo, o grau de incerteza inerente à expectativa desse resultado. A incerteza subjetiva, a contra-expectativa, é em si representada por um conjunto de ideias ao qual darei o nome de “ideias antitéticas aflitivas” (p. 163).

No caso de uma intenção, essas ideias antitéticas se passam assim: “não vou conseguir executar minha intenção, porque isto ou aquilo é demasiado difícil para mim, e eu sou incapaz de fazê-lo; sei, também, que algumas outras pessoas igualmente fracassaram em situação semelhante”.
O outro caso, o da expectativa: a contra-expectativa consiste em enumerar todas as coisas que talvez possam me acontecer, diferentes das que eu desejo. Mas, voltando às intenções, como é que uma pessoa, com vida ideativa sadia, lida com ideias antitéticas que se opõem a uma intenção? Com a autoconfiança da saúde, ela as reprime e inibe, e na medida do possível, as exclui de suas associações de pensamentos. E quando há uma neurose presente?

Temos de supor a presença primária de uma tendência à depressão e à diminuição da autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e individualizadas na melancolia. Nas neuroses, pois, uma grande atenção é dedicada [pelo paciente] às ideias antitéticas que se opõem às intenções (p. 163).

Quando essa intensificação das ideias antitéticas se relaciona com as “expectativas”, então, o feito se manifesta num quadro mental difusamente pessimista. Quando a relação é com as “intenções”, ela origina as perturbações que se agrupam no que se conhece como folie de doute, marcada pela descrença na capacidade pessoal. Nesse ponto, as duas principais neuroses se comportam de modo distinto: na neurastenia,

a ideia antitética, patologicamente intensificada, combina-se com a ideia volitiva num único ato da consciência; ela exerce uma subtração na ideia volitiva e causa a fraqueza da vontade (p. 164).

Na histeria, o processo difere do anterior,

[em primeiro lugar] em consonância com a tendência à dissociação da consciência na histeria, a ideia antitética conflitiva, que parece estar inibida, é afastada da associação com a intenção e continua a existir como ideia desconectada, muitas vezes inconscientemente para o próprio paciente. [Em segundo lugar] é extremamente característica da histeria que, quando chega o momento de se pôr em execução a intenção, a ideia antitética inibida consegue atualizar-se através da inervação do corpo, com a mesma facilidade com que o faz, em circunstâncias normais, uma ideia volitiva. A ideia antitética se estabelece, por assim dizer, como uma “contravontade”, ao passo que o paciente, surpreso, apercebe-se de que tem uma vontade que é resoluta, porém impotente. Talvez, conforme já disse, estes dois fatores, no fundo, sejam um só: pode ser que a ideia antitética apenas seja capaz de se impor porque não inibe a sua combinação com a intenção, da forma como a intenção é inibida por ela (p. 164). 

Ora, segundo Freud, se a mãe fosse neurastênica sua conduta seria a de sentir um temor consciente da tarefa que lhe competia, teria se preocupado com os vários acidentes e perigos, e teria amamentado sem dificuldades, ou então (se a ideia antitética dominasse), teria abandonado seu encargo por se sentir receosa. Se fosse histérica seria o contrário.

Pode não estar consciente do seu receio, estar bastante decidida a levar a cabo sua intenção e passar a executá-la sem hesitação. Aí, porém, comporta-se como se fosse sua vontade não amamentar a criança em absoluto. Ademais, essa vontade desperta nela todos os sintomas subjetivos que uma simuladora apresentaria como desculpa para não amamentar seu filho; perda do apetite, aversão à comida, dores quando a criança é posta a mamar. E, como a contravontade exerce sobre o corpo um controle maior do que a simulação consciente, também produz no aparelho digestivo uma série de sinais objetivos que a simulação seria incapaz de engendrar. Aqui, em contraste com a fraqueza da vontade mostrada na neurastenia, temos uma perversão da vontade (p. 165).

Assim, Freud classifica sua paciente como uma hystérique d’occasion. Ou seja, ela era capaz de produzir uma série de sintomas como um mecanismo característico da histeria. A causa fortuita era o estado de excitação da paciente antes do primeiro parto ou a sua exaustão após o mesmo.
Freud ainda menciona outro caso, também de uma paciente histérica que apresentava um “ruído particular”, um tique, que sempre se intrometia em suas conversas, um estalo da língua, que se apresentava a muito tempo. Recordou, sob hipnose, que iniciou quando sua filha mais nova esteve muito doente, com convulsões.

Quando, certa vez, ela adormeceu, a paciente sentou à beira da cama e pensou que teria que ficar absolutamente quieta para não acordá-la, depois de tantos espasmos e convulsões. Foi quando ocorreu o primeiro estalo. Dias depois, quando de uma tempestade, um raio atingiu uma árvore e o cocheiro teve que parar os cavalos abruptamente. Ela pensou novamente que teria que ficar quieta para não assustar ainda mais os cavalos. Outro estalo veio, e não pararam mais. Assim,

a mãe, exausta com suas angústias e dúvidas acerca de suas tarefas de cuidar da criança enferma, tomou a decisão de não deixar que sequer um som saísse de seus lábios, com receio de perturbar o sono da filhinha, o qual tinha custado tanto a vir. Mas, no seu estado de exaustão, mostrou-se mais forte a concomitante ideia antitética de que ela, não obstante, pudesse fazer um ruído; e essa ideia teve acesso à inervação da língua, que sua decisão de manter-se em silêncio talvez pudesse ter-se esquecido de inibir, irrompeu no fechamento dos lábios e produziu um ruído que daí em diante permaneceu fixado (p. 167).

Mas, como sucede a ideia antitética adquirir a supremacia em consequência da exaustão geral? Freud diz que a exaustão é apenas parcial, pois o que está exausto são os elementos do sistema nervoso que formam o fundamento material das ideias associadas com a consciência primária; as ideias que estão excluídas dessa cadeia associativa (do ego normal), as ideias inibidas e suprimidas, não estão exaustas, e predominam no momento da disposição para a histeria. Assim,

se atentarmos cuidadosamente para o fato de que são as ideias antitéticas aflitivas (inibidas e rechaçadas pela consciência normal) que se impõem num primeiro plano, no momento para a disposição para a histeria, e têm acesso à inervação somática, então teremos a solução para compreender também a peculiaridade dos delírios dos ataques histéricos (…). São os grupos de ideias recalcadas – laboriosamente recalcadas – que entram em ação nesses casos, pela operação de uma espécie de contravontade, quando a pessoa cai vítima da exaustão histérica (p. 168).
Essa emergência de uma contravontade é predominantemente responsável pela característica demoníaca tão frequentemente mostrada pela histeria – isto é, a característica de os pacientes serem incapazes de fazer alguma coisa precisamente quando e onde mais ardentemente desejam fazê-la; de fazerem justamente o oposto daquilo que lhes foi solicitado; e de serem obrigados a cobrir de maus-tratos e suspeitas tudo o que mais valorizam. A perversidade de caráter que os histéricos mostram, sua ânsia de fazerem a coisa errada, de parecerem doentes quando mais necessitam estar bem (…) esses pacientes se tornam vítimas desamparadas de suas ideias antitéticas (p. 168-9).
Mas, Freud se questiona, o que acontece às intenções inibidas em relação à vida ideativa normal?
Poderíamos ser tentados a responder que elas simplesmente não existem. O estudo da histeria mostra que, não obstante, elas realmente existem, ou seja, que é mantida a modificação física a elas correspondente e que elas são armazenadas e levam a vida insuspeitada numa espécie de reino das sombras , até emergirem como maus espíritos e assumirem o controle do corpo, que, geralmente, está sob as ordens da predominante consciência do ego (p. 169).

Nenhum comentário:

Postar um comentário