a questão da transferência
Freud: from hypnosis to free-association
the issue of transference
Sérgio Zlotnic
Da psicoterapia à psicanálise www.leandromotta.psc.br
Apoiado
em bases fenomenológicas construídas a partir das obras de Husserl e
Heidegger, por mais de dez anos fui um psicoterapeuta interessado
noutras portas de entrada para a
alma que não apenas a
palavra. Esbarrei, entretanto, no fenômeno da transferência, estrangeiro ao corpo teórico da minha abordagem e que exigia decifração.
Passei,
então, a frequentar grupos psicanalíticos de estudo e supervisão com o
firme propósito de aprender a escutar os comunicados que a transferência
veicula e para os quais me acreditava surdo.
Com a
interpretação da transferência,
meu novo instrumento de trabalho, recém-aprendido, capaz de
desembrulhar tantos nós, pude encontrar novas direções para muitos
impasses dos processos terapêuticos dos pacientes que, na época, eu
acompanhava. E, como o motorista que instala uma buzina nova, eu me
sentia magicamente poderoso, de posse do instrumento que me dava o dom
de enxergar além. Desnecessário levantar da poltrona: “
simplesmente pela
palavra”, podia iluminar regiões escuras e alcançar os confins.
Esta
é a primeira lembrança do efeito da psicanálise sobre a minha clínica
não psicanalítica. Não tinha a intenção de me tornar psicanalista. Como
se tivesse aportado em uma ilha com o intuito de apenas conhecê-la, tudo
o que eu desejava era ser um psicoterapeuta que trabalhasse a
transferência! Mas o navio já havia sido queimado no porto: as questões
da clínica (que “fazem a metapsicologia sofrer”) eram tão envolventes
que me levaram, de cipó em cipó, de interrogação em interrogação, para
dentro de uma mata cerrada, feita de conceitos e indagações que conduzem
a problemas cada vez mais complexos. Fui, assim, me afastando de meu
terreno familiar, de minha terra de origem. E demorou para que eu
integrasse a idéia de que a análise transcorre na transferência e para
que me interessasse, particularmente, pelo estudo das fundações dessa
relação durante a formação em psicanálise, à qual passei a me dedicar.
Os
temas de meu interesse diziam respeito à questão da técnica
psicanalítica e o primeiro mergulho no texto de Freud “Recomendações aos
médicos que exercem a psicanálise” [1] surpreendeu: esta escritura
lembra sobremaneira a postura fenomenológica de um psicoterapeuta! Na
atenção fl utuante indicada ao analista, vê-se, entre outras, a noção
husserliana de Lebenswelt – mundo vivido: o terapeuta busca permanecer
no nível do vivido imediato, anterior à refl exão. A postura de um
psicanalista, afi nal, pensei eu, não é muito diferente da posição
pretendida por um fenomenólogo.
Mais tarde, em “Psicologia de
grupo e análise do ego” [2], o tema da hipnose se conecta com as
questões do narcisismo e da sugestão. Ali, para esboçar a gênese mítica
do ideal do eu, consideram-se as relações do primitivo pai com seu fi
lho e de suas semelhanças com outros pares equivalentes do ponto de
vista dinâmico: sujeito apaixonado e objeto da paixão; hipnotizador e
hipnotizado; e, em certos momentos, sublinhe-se, paciente e analista. A
transferência, em seu aspecto-sugestão, está aí contemplada, o que nos
reenvia ao tema da técnica clínica: o que ocorreria com a atenção
flutuante quando o vínculo analista/analisando esbarra nesta modalidade
primitiva da horda primeira? Dito de outra forma, em posição de servil
subserviência, pode um sujeito abandonar-se ao sabor do fl uxo das
cadeias associativas? Em outras palavras, para chegar a ser sujeito, não
está suposto destacar- se da massa hipnótica?
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Na
contemporaneidade da psicanálise, em que medida as armadilhas da hipnose
se atualizam e desafi am o analista em seu lugar de interpretador, em
seu lugar de linguagem, engessando- o? Nos episódios em que o
instrumento
princeps do trabalho analítico, a linguagem, parece
entrar em colapso, haveria armadilhas nas quais o analista/terapeuta é
capturado? De que natureza são essas armadilhas e qual seu vínculo com o
tema da hipnose?
Ao refletir sobre esses momentos de uma
análise/terapia, nos quais um obstáculo se interpõe no fluxo do processo
do tratamento e precisa ser atravessado, imaginei a existência de duas
forças operando na clínica: uma delas, expressando-se na forma das
metamorfoses da atenção flutuante e da associação livre, e outra,
traduzindo-se com o nome de
estados hipnóides. Ambas estariam presentes nos processos psicoterápicos ou psicanalíticos.
Trato
neste artigo da passagem da hipnose à associação livre na experiência
de Freud, sugerindo que este percurso será necessariamente repetido na
prática clínica de todo dia, por menos que um analista queira, ou ainda
que não saiba. Tal como a idéia de que a ontogênese refaz a fi logênese,
o itinerário de Freud seria obrigatoriamente refeito pela dupla
analista/analisando. Não que os analistas, com um pêndulo na mão, tentem
hipnotizar de fato seus pacientes. Mas, em certos momentos do suceder
analítico, a ligação erótica que vincula analista/analisando se daria à
moda da hipnose. Suponho que isso seja um fato da clínica analítica que
é, além de inevitável, desejável. A posição exageradamente
neutra
e distante do analista pode ser tão nociva quanto seu reverso: uma
atitude intrusiva. E mais: o analista deve deixar-se capturar pelas
forças hipnóticas que insistem em abraçar a dupla do jogo analítico.
Donde, abandonar muito precocemente o analisando ao sabor de suas
cadeias associativas pode ser, em certos momentos, desfavorável.
Acreditando
que o próprio paciente indica os caminhos que inauguram a psicanálise
propriamente dita, e que esse caminho passa necessariamente pela
transferência, retornei ao “Psicologia das massas e análise do ego”,
inspirado num artigo de Alonso [3] que examina dois casos clássicos da
clínica freudiana:
Emmy [4] e o
Homem dos Lobos [5]. A
primeira paciente indicou a Freud o lugar de analista a ser por ele
ocupado. O segundo, nas palavras da autora, através de sua passividade e
docilidade, como que “hipnotizou” Freud, levando-o a atuar:
estabelecendo um prazo para o final de sua análise, o analista acata o
desejoordem de uma porção do paciente – procedimento que o próprio Freud
posteriormente criticou.
O exame desses dois casos teve sobre
mim grande impacto. Considerava que o interesse do paciente não seria
outro que não o de aconchegar- se na cadeia narcísica dos processos
hipnóticos, os quais se oporiam ao laborioso processo analítico de
simbolização. Por isso, me surpreendeu que Emmy tivesse rompido por
conta própria a cadeia especular que capturava analista e paciente.
Apoiado também em meu trabalho prático, cheguei a esta conclusão, de que
o paciente pode empurrar o processo na direção daquilo que a
psicanálise deseja e facilitar o tratamento naqueles momentos em que a
resistência do
analista está presente. Em relação ao segundo
caso examinado por Alonso em seu artigo, o que mais me intrigou foi a
inversão de papéis: intrigante pensar, como faz a autora, que o
hipnotizado (Homem dos Lobos) teria o poder de contra-hipnotizar – ou
lançar
contraordens. É assim que ela entende o procedimento de
Freud no caso: ele estaria obedecendo a uma contra-ordem do paciente,
estabelecendo um limite para sua análise. Interessei-me pela questão da
hipnose a partir daí, motivado por esta dúvida/questão:
quem hipnotiza quem?
Posteriormente,
me deparei com o trabalho minucioso do psicanalista francês Léon
Chertok [6], cujas propostas são surpreendentemente próximas daquilo que
eu estava desenvolvendo. Também Chertok parece acreditar que a hipnose
está presente na clínica psicanalítica, o que, para ele (e para mim),
não é algo a ser lamentado nem evitado. Utilizando-me da riqueza de seu
livro, pude encontrar algumas indicações que vinculam a passagem da
hipnose à associação livre (que inaugura a psicanálise) ao texto de
Freud de 1920 [7], que impõe uma nova postura técnica da parte do
analista, como se sabe.
A hipnose e o trauma www.leandromotta.psc.br
A
princípio, a hipnose parecia consistir num instrumento puro de
rememoração, confiável e “científico”. Como se o médico fosse apenas o
aplicador de uma técnica e nada tivesse a ver com o material que
emergisse do paciente. A esse material – lembranças traumáticas – era
atribuído o estatuto de
fato realmente ocorrido, ligado a
afetos estrangulados ou não expressos à época do acontecimento, mas que,
uma vez liberados (recordados), eliminariam o sintoma neurótico que
ocupava o lugar de sua rememoração.
Há, porém, um elemento misterioso em ação por trás da hipnose: os afetos liberados por esta técnica dirigem-se a um
terceiro ausente, em algum ponto entre o hipnotizador e o hipnotizado. Além disso, os afetos descobertos talvez não sejam simplesmente
liberados
mas, em certa medida, criados. Fica claro que o laço estabelecido entre
médico e paciente neutro não é, e que a lembrança que a hipnose
desperta nos pacientes é construída e não
de fato ocorrida.
Sendo assim, a técnica estaria condenada (ela simplesmente encontraria
os traumas que o médico deseja!) porque falseia a realidade, fazendo
voltar à memória do paciente acontecimentos traumáticos que não
ocorreram
realmente, mas foram imaginados.
Com a noção
psicanalítica de fantasia construída pelo sujeito, a estratégia passa a
ser o conhecimento desse campo atravessado pelo desejo. A origem da
neurose estaria, então,
dentro do paciente e não em um evento
externo a ser perseguido, ainda que a história efetivamente ocorrida – e
absolutamente irrecuperável – certamente o tenha marcado. A
teoria da sedução é
abandonada com a compreensão de que os traumas sexuais seriam fantasias
imaginadas pela criança para se defender de sua própria pulsão
projetada: a fantasia cria o trauma! Em outras palavras, o trauma é uma
fantasia forjada pelo desejo. O abandono da hipnose coincide, portanto,
com a descoberta da transferência: poderosos e descontrolados afetos são
dirigidos para a (e mobilizados pela) figura do médico, que passa a
consentir em ocupar vários lugares no imaginário do paciente e não
apenas aquele do hipnotizador. Sustenta-se sobre esta base a idéia de
transferência. Embora o amor do paciente seja dirigido ao médico, ele
não deve se acreditar o único alvo desse afeto. Reedições de um passado
esquecido estão constantemente em jogo na cena analítica.
De um
único lugar diante do paciente, o analista passa a ocupar lugares
diversos, ao gosto (do inconsciente) do paciente. E a cena terapêutica,
que parecia um espaço neutro, no qual se desenrolava a
luta contra o esquecimento,
com o médico se acreditando um observador isento, se torna mais
complexa, dando lugar à cena analítica. Para que os múltiplos
personagens que habitam o paciente se apresentem, o analista se oferece,
com seu corpo e sua escuta, como alvo das projeções e transferências
que irão, dessa forma, revelar a textura dramática do mundo de seu
paciente – sua história, fantasia e fatos traumáticos, ocorridos ou
construídos. Este aspecto, inclusive, deixa de ter importância, uma vez
que os fenômenos ganham o estatuto de
realidade psíquica.
O
analista permite que surja, assim, espalhada no tempo de uma análise, a
ilusão do analisando, sem compartilhar da convicção de que essa ilusão
tenha sido
fato algum dia. Apesar de a
suspeita – a história
relatada pelo paciente pode não ter sido a história
ocorrida
– ser parte irreversível da atitude do analista, este nunca duvida da
verdade psíquica dos fatos que permeiam a viagem analítica de cada
paciente. Verdade psíquica que não coincide com a verdade dos
acontecimentos factuais, agora para sempre perdida.
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Retomando o
artigo de Alonso mencionado acima, ao refl etir sobre a questão da
sugestão na transferência, a autora se detém por um momento na análise
do “Homem dos Lobos” [8]. Depois de quatro anos de análise, Freud decide
colocar um prazo para interromper o tratamento desse paciente que se
encontrava por muito tempo “numa atitude de indiferente docilidade”: o
que imperou nesse momento clínico foi a sugestão, afi rma Alonso. Diz
ela:
Freud, a partir do lugar de ideal do ego, exerceu um
ato de sugestão. É como se, pela passividade, o Homem dos Lobos tivesse
solicitado a Freud “colocar a mão na sua fronte”. É como se Freud, ao
responder à demanda, tivesse re-instaurado uma continuidade especular,
deixando ambos aprisionados numa estruturação narcisista [9].
Donde,
para nós, a pergunta: desse par analista/ paciente, que teria derrapado
para um terreno minado de armadilhas da hipnose, quem é o hipnotizador,
quem é o hipnotizado? Quem teria pressionado a testa de quem?
Intrigante imaginar, com Alonso, que Freud teria cedido a uma
contraordem do paciente. Claro está que no tratamento do Homem dos
Lobos, iniciado em 1910, Freud já havia abandonado há tempo o
hipnotismo. Pois então: não basta abandonar a hipnose para abandonar a
hipnose! Haveria armadilhas hipnóides que continuariam a contaminar o
campo e a capturar o analista. Um caldo narcísico a ser atravessado:
como se o analista tivesse de inaugurar a psicanálise a cada vez e com
cada paciente, encontrando a saída da
prisão de continuidade especular.
Como se o caminho de Freud, das técnicas da hipnose à técnica de
associação livre, tivesse de ser novamente percorrido, eis nossa tese.
A realidade psíquica www.leandromotta.psc.br
Ainda
quando Freud utilizava a hipnose sustentando uma atitude de insistência
e pressão, interrogando seus pacientes para arrancar seus segredos, sua
paciente Emmy von N. [10] sugere que ele pare de pressionar e a deixe
falar livremente. Sempre com Alonso, nesta solicitação, “Emmy abre
brechas no campo da sugestão”, como que indicando a Freud seu lugar de
analista. Lugar de escuta a ser encontrado fora do modelo surdo da
escolha narcisista de objeto. Mas, sugiro, para que este
novo
lugar seja encontrado, parecem necessárias operações prévias que incluem
assassinar um pai, quebrar um tabu, haver- se com o próprio desejo. Na
medida em que, para Freud de 1921 [11], o indivíduo que se libertou do
grupo teria sido o primeiro poeta épico, pareceria coerente sugerir que o
ato psíquico que leva até a saída da
prisão de continuidade especular
(do circuito narcísico, da armadilha da hipnose) seria sinônimo de um
ato poético: apreender, em palavras, sensações que seriam pura
intensidade. Da mesma maneira, o
outro estaria fora do
circuito narcisista
e só poderia ser alcançado num salto. Salto que possibilitaria
apreender uma outra imagem, que não a de si mesmo, no olhar do segundo
elemento da dupla.
Consentir em ser apanhado pela armadilha da
hipnose e ali permanecer, pelo tempo que fosse necessário, daria a
analista/analisando um
chão preparatório para o salto poético.
Pois não foi depois de um tempo de submissão ao pai, e somente depois
disto, que o fi lho poeta épico se fez sujeito e encontrou uma posição
diferente daquele lugar comum, da massa, em que estava prisioneiro?
Teria, assim, que haver um tempo de
ilusão, um tempo de
acreditar numa relação dual narcísica, antes de operar a passagem da
hipnose à associação livre. E esta passagem, note-se, poderia ser
facilitada e até inaugurada pelo próprio paciente – que também
empurra o analista na direção da psicanálise. Recusar este tempo de
hipnose poderia ser traumático e tão nocivo quanto permanecer indefi nidamente prisioneiro das cadeias narcísicas.
Dentre
as razões que levam Freud ao abandono da hipnose em si, enquanto
técnica, destaco três (e desconsidero o motivo anedótico segundo o qual
Freud teria sido um mau hipnotizador!). Em primeiro lugar, ela intensifi
ca ao máximo a transferência como efeito da sedução que captura médico e
paciente – o analista, que sente superada magicamente sua impotência
fundamental em relação à verdade do outro, e o analisando, que encontra o
profi ssional onipotente, encarnação do grande Outro que possui todo o
saber. A transferência recém-descoberta, necessária, inevitável e motor
da análise, é de tipo positivo e moderado para o sucesso do tratamento.
Na hipnose, como demonstra o mesmo texto de Freud de 1921, apenas uma
posição transferencial ganha máxima intensidade: a posição do fi lho da
horda primitiva em estado de terror e fascínio diante do pai
todo-poderoso. A análise recém-inaugurada passará também necessariamente
por aí. Mas não ficará congelada nessa única modalidade de ligação
erótica, grave e monotônica, na qual uma “prisão de continuidade
especular” se deflagra [12].
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O segundo motivo para o abandono
das técnicas hipnóticas diz respeito à idéia de resistência: a hipnose a
serviço da catarse, ainda que pretendesse também operar pela
via de levare
(na medida em que levanta lembranças traumáticas e as desmancha,
lembranças que repousavam nos porões do sujeito hipnotizado), não se
coaduna com a análise da resistência. As resistências são um poderoso
indicador dos caminhos a serem trilhados nos labirintos da clínica.
Quanto mais perto estivermos dos núcleos patógenos, daquilo que
interessa numa análise, daquilo que contém
verdade, tanto maior
a resistência do paciente em permitir a aproximação. A resistência
sinaliza, portanto, as portas a serem abertas no processo. Prescindir
das resistências, como ocorre na hipnose, signifi ca perder um
importante indicador.
A terceira razão para o abandono da
hipnose, como já apontamos, refere-se à idéia de fato. A noção de um
fato efetivamente ocorrido a ser recuperado pelo tratamento foi
desmontada. Com isso, o trauma perde o caráter de verdade factual. No
registro da fantasia, no qual agora a análise vai transcorrer, as
lembranças são construídas e passam, necessariamente, pela transferência
que atravessará o processo – cada passo, cada recordação – de cabo a
rabo. Com o nascimento da psicanálise, o analista está cabalmente
implicado em cada um e em todos os movimentos do analisando. O lugar de
cientista neutro, escavando ruínas arqueológicas, utopia impossível, fi
ca para sempre perdido. A legitimidade da psicanálise enquanto ciência
terá de ser encontrada noutro lugar. A verdade que se descobre numa
análise é da ordem da ficção.
Cabe aqui diferenciar a
técnica hipnótica a serviço da catarse, da
sugestão hipnótica pura e simples: a primeira pretende operar pela
via de levare ao passo que a segunda se situa na
via de porre.
A primeira busca acontecimentos traumáticos acreditando que tenham
realmente ocorrido e que podem ser desmanchados com a rememoração. Todo
material produzido nessa terapia, na concepção do terapeuta, pertence ao
paciente. A segunda acrescenta ao material que emerge do paciente as
idéias-substância
fornecidas pelo técnico, colocando ali, por conseqüência, elementos
externos ao paciente – tanto assim que, para Kohut, o nascimento da
psicanálise se dá com o abandono da sugestão direta e não com o abandono
da hipnose que, para ele, pode ser psicanalítica [13]. Assim, tomando
essa idéia de Kohut ao pé da letra, desembocaríamos na seguinte
indagação: haveria ilhotas de psicanálise no campo da hipnose?
Embora
Freud nunca tenha desistido completamente de precisar a história
ocorrida de fato e que teria marcado o sujeito, buscando por vezes
encontrar a hora exata e o acontecimento pontual – que faria da
psicanálise, enfi m, uma ciência? – como no caso do “Homem dos Lobos”
[14], no caminho teórico empreendido, as idéias de fantasia e de
representação psíquicas foram reduzindo a importância do
fato efetivamente ocorrido na história do sujeito.
Com
a idéia de fantasia, portanto, o trauma fica transformado: a cena
impactante (traumática) pode não ter ocorrido, mas ter sido fantasiada.
Traumas poderiam ser então construções da fantasia, representações que
acima de tudo expressariam as criações do sujeito e o seu desejo. O
fato, nesse momento inaugural da psicanálise, seria algo para sempre
perdido. Obviamente o arranjo peculiar do psiquismo de qualquer sujeito é
marcado pelo ambiente, meio externo e pela história vivida, mas o peso e
a ênfase recaem agora nas construções intrapsíquicas desse sujeito que
faz um trauma porque tem desejo.
Entretanto… o trauma insiste! www.leandromotta.psc.br
Sugerir,
como fazemos aqui, que o percurso de Freud, da hipnose à associação
livre, seja necessariamente repetido na clínica contemporânea, signifi
ca retroceder na teoria psicanalítica e, ao mesmo tempo, avançar na
história da psicanálise, contemplando as duas tópicas. Significa
recuperar a
verdade do trauma da época das técnicas hipnóticas e interrogar novamente a noção de um
fato – fantasia ou fato
realmente ocorrido? Significa
des-inaugurar a psicanálise para poder re-inaugurá-la adiante. E não estamos sozinhos nisso. Senão vejamos:
Em
primeiro lugar, acreditamos que, do ponto de vista técnico, ao
sublinhar o aspecto traumático presente no seio da clínica psicanalítica
cotidiana (e interrogá-lo), o analista ganha um lugar de escuta
peculiar, no qual pode circular no cenário analítico com fl exibilidade e
melhor responder – mesmo que nada expresse – às demandas do analisando.
Pensando assim, estaríamos de acordo com Freud de 1920 [15]
que, ao recolocar a traumatogênese na equação etiológica da neurose,
re-desperta a abandonada
teoria da sedução.
Estaríamos
também de acordo com Ferenczi que, levando às últimas conseqüências
justamente esta escritura de Freud, “Além do princípio de prazer” acaba
por desembocar na
neocatarse [16]. Não seria irrelevante mencionar aqui que, com a
teoria da sedução generalizada [17], Laplanche está, ao menos teoricamente, em sintonia com Ferenczi…
Finalmente, ao sugerir essas idéias, estamos em conformidade com um movimento de retorno
freudo-ferencziano
da psicanálise atual [18], recuperando um Freud mais antigo, da
psicoterapia e da catarse – muito embora não se cogite repetir
literalmente as condutas de Freud do tempo da
teoria da sedução:
trata-se, apenas, de reconhecer e dar espaço no cenário analítico aos
fenômenos da ordem de um trauma (e apreciar seus efeitos) – e concluir
que, na história da psicanálise e no percurso de Freud, nada deve ser
descartado como obsoleto, porque o que foi abandonado retorna mais tarde
solicitando lugar, legitimidade, cidadania.
Na
contemporaneidade, vale a pena observar a literatura psicanalítica
recente e apreciar a quantidade de artigos relativos a pacientes
difíceis, aqueles que desafi am o lugar do analista – em especial os que desafi am a clínica do recalque (
borderlines,
por exemplo), que exigem, mais que os demais, que o analista descubra
maneiras de reescrever a psicanálise, descendo ao nascedouro de sua
ciência, no século retrasado, e procedendo a um trabalho de gênese.
Cabe
por fim confessar que, ao afastar-me da psicoterapia e abraçar a
clínica psicanalítica, não tinha como saber do meu irônico reencontro
com uma fenomenológica experimentação habitando o umbigo e os porões da
psicanálise. Reencontro com uma psicoterapia que, desde 1920, se
reinstala na metapsicologia e na técnica psicanalíticas.
Meu
propósito aqui era dar uma panorâmica da passagem da hipnose à
associação livre. Os passos e o contexto, em maior detalhe, que levam
Freud a operar seu salto – e fundar a noção de
fato psíquico –
e, especialmente, o efeito da pulsão de morte no corpo teórico-clínico
da psicanálise (que faz retornar com força a noção provisoriamente
abandonada de um trauma) serão examinados em maior profundidade em outro
artigo.
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